Hoje em dia muitas pessoas são vistas fazendo
uso de um anel preto simples na mão. Esse anel possui vários nomes: anel de coco,
anel de tucum, anel preto. Ao fim e ao cabo, são a mesma coisa. Todavia,
acontece que há pessoas que usam sem nem saber o seu real significado, ou,
porque não dizer, reais significados.
Antes de tudo, em nível de curiosidade acerca
do material utilizado no anel de tucum, sabemos que é uma espécie de palmeira muito
resistente, de caule espinhoso, e bastante comum na Amazônia. A palavra tucum
deriva do tupi e significa "agulha para costura", por causa,
justamente, dos espinhos.
Agora, sem mais delongas, como dado
histórico, voltamos ao tempo do Brasil imperial. Na ocasião, os escravos
presenciavam, como serviçais, faraônicas celebrações matrimoniais dos senhores
de engenho e sinhás. E como é costume no rito católico, acontece a troca de
alianças. Os escravos, por sua vez, fazendo seus ritos de união entre si, nas
senzalas, começaram a imitar o gesto de trocar alianças, contudo, não tendo
condições financeiras para adquirir peças de ouro ou prata, utilizavam o anel
de tucum.
Ademais, neste período de escravidão, anel de
tucum se tornou, para eles, símbolo de amizade, união e resistência, e,
sobretudo, luta pela libertação.
***
A vida toda fazemos pactos: empregatícios,
matrimoniais, imobiliários, legais, etc. Desse modo, trago, para reflexão, um
pacto muito bonito que aconteceu em meados 1965, que Foi chamado de “Pacto das Catacumbas”:
O Pacto das
Catacumbas foi um documento redigido e assinado por quarenta padres
participantes do Concílio Vaticano II, entre eles muitos bispos
latino-americanos e brasileiros, no dia 16 de novembro de 1965, pouco antes
da conclusão do concílio. Este documento foi firmado após a eucaristia na
Catacumba de Domitila. Por este documento
de 13 itens, os signatários comprometeram-se a levar uma vida de pobreza,
rejeitar todos os símbolos ou os privilégios do poder e a colocar os pobres
no centro do seu ministério pastoral. Comprometeram-se também com a
colegialidade e com a co-responsabilidade da Igreja como Povo de Deus, e com
a abertura ao mundo e a acolhida fraterna. Um dos proponentes do pacto foi
Dom Hélder Câmara. Este pacto influenciou a nascente teologia da libertação e
os rumos da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano,
realizada em Medellín. Os bispos
brasileiros signatários do pacto foram Dom Antônio Batista Fragoso, da
Diocese de Crateús, Dom Francisco Austregésilo de Mesquita Filho da Diocese
de Afogados da Ingazeira, Dom João Batista da Mota e Albuquerque, arcebispo
de Vitória, monsenhor Luís Gonzaga Fernandes, sagrado bispo auxiliar de
Vitória dias depois, Dom Jorge Marcos de Oliveira, da diocese de Santo André,
Dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, Dom Henrique Golland
Trindade, OFM, arcebispo de Botucatu e Dom José Maria Pires, arcebispo da
Paraíba.
Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Pacto_das_Catacumbas>. |
Acontece que os pactos, muitas das vezes, são
acompanhados de símbolos. Aí que entra o anel de tucum nesta história toda. Ele
se tornou um símbolo entre os cristãos (bispos, padres, religiosos e leigos),
sobretudo após a década de 60 (com o advento da Teologia da Libertação), para
indicar a simplicidade e o compromisso com os mais fracos e oprimidos, rendendo
até mesmo grandes testemunhos de martírios.
Também alguns membros da comunidade LGBTQIA+
utilizam o anel de tucum, em diferentes dedos das mãos, como uma forma de identificação
da orientação sexual; mas este não é o nosso foco. Esta prática é,
relativamente, nova e não nos diz respeito.
O que quero dizer com tudo isso é que,
independem os símbolos quando nossas atitudes concretas do dia-a-dia falam por
si. Afinal de contas, “o hábito não faz o monge”. Veja, há pessoas
compromissadas com o povo de Deus, sobretudo os mais fracos e oprimidos, que usam anel de tucum e há pessoas
com o mesmo compromisso que não usam; do mesmo modo, há pessoas que usam o anel
de tucum e não vivem qualquer tipo de compromisso. Isto é, não reconhecemos as
pessoas pelo tipo de anel que elas usam no dedo, mas pelo que ela vive. Aqui,
vale o conselho de Wittgenstein: “sobre aquilo de que não se pode falar,
deve-se calar”.
Caminhando para o fim desta reflexão, deixo
um trecho do livro “Teologia do cotidiano”, de Rubem Alves, que ilustra, por
meio de uma parábola, a importância de calar a nossa boca, para deixar falar os
nossos gestos:
Perdida no meio dos viajantes que
enchiam o aeroporto, ela era uma figura destoante. A roupa largada, os passos
pesados, uma sacola de plástico pendurada numa das mãos – esses sinais diziam
que ela já não mais ligava para a sua condição de mulher: não se importava em
ser bonita. Pensei mesmo que se tratava de uma freira. Seu comportamento era
curioso: dirigia-se às pessoas, falava por alguns momentos, e como não lhe
prestassem atenção procurava outras com quem falar. Quando vi que ela tinha
uma Bíblia na mão compreendi tudo: ela se imaginava possuidora de
conhecimentos sobre Deus que os outros não possuíam e tratava de salvar a
alma deles. Meu caminho me obrigou a passar
perto dela – e quando olhei para o seu rosto de perto levei um susto: eu o
reconheci de outros tempos, quando ela era uma moça bonita que ria e brincava
e para quem olhávamos com olhares de cobiça. Não resisti e chamei alto o seu
nome. Ela se espantou, olhou-me com um olhar interrogativo, não me reconheceu.
Com razão. Os muitos anos deixam suas marcas no rosto. – Eu
sou o Rubem! Seu rosto se iluminou pela
lembrança, sorriu, e pensei que poderíamos nos assentar e conversar sobre as
nossas vidas. Mas sua preocupação com a minha alma não permitia essas perdas
de tempo com conversa fiada. E ela tratou de verificar se o meu passaporte
para a eternidade estava em ordem: – Você
continua firme na fé!? – Mas
de jeito nenhum. Então você deixou de ler a Bíblia? Pois lá está dito que
Deus é espírito, vento impetuoso que sopra em todo lugar, o mesmo vento que
ele soprou dentro da gente para que respirássemos, fôssemos leves e
pudéssemos voar. Quem está no vento não pode estar firme. Firmes são as
pedras, as tartarugas, as âncoras. Você já viu um papagaio firme? Papagaio
firme é papagaio no chão, não voa. Pois eu estou mais é como urubu, lá nas
alturas, flutuando ao sabor do imprevisível Vento Sagrado, sem firmeza
alguma, rodando em largos círculos. Ela ficou perdida, acho que nunca
havia ouvido resposta tão estranha, mudou de tática e tentou pegar a minha
alma do outro lado, desatou a falar de Deus, informou-me que ele é
maravilhoso etc., etc., etc., como se estivesse no púlpito em celebração de
domingo. Refuguei e disse: – Acho
que quem não está firme em Deus é você. Olha, passei a noite toda respirando,
estou respirando desde que acordei, e juro que agora é a primeira vez que
penso no ar. Não pensei nem falei no ar porque somos bons amigos. Ele entra e
sai do meu corpo quando quer, sem pedir licença. Mas a história seria outra
se eu estivesse com asma, os brônquios apertados, o ar sem jeito de entrar,
ou, como naquele anúncio antigo do Carope Bromil, o coitado do homem sufocado
por uma mordaça, gritando pelo ar que lhe faltava. Por via das dúvidas até
andaria com uma garrafa de oxigênio na bagagem, para qualquer emergência. E continuei: – Pois
Deus é como o ar. Quando a gente está em boas relações com ele não é preciso
falar. Mas quando a gente está atacado de asma, então é preciso ficar
gritando pelo nome dele. Do jeito como o asmático invoca o ar. Quem fala com
Deus o tempo todo é asmático espiritual. E é por isso que andam sempre com
Deus engarrafado na Bíblia e outros livros e coisas de função parecida. Só
que o vento não pode ser engarrafado... Aí ela viu que minha alma estava
perdida mesmo e, como consolo, fez um sinal de adeus e disse que iria orar
muito por mim. Aí eu protestei, implorei que não o fizesse. Disse-lhe que eu
tinha medo de que Deus ficasse ofendido. Pois há rezas e orações que são
ofensas. É óbvio: se vou lá, bater às portas de Deus, pedindo que ele tenha
dó de alguém, eu lhe estou imputando duas imperfeições que, se fosse comigo,
me deixariam muito bravo. Primeiro, estou dizendo que não
acredito no amor dele, deve ser meio fraquinho, sem iniciativa, preguiçoso, à
espera do meu cutucão. Se eu não der a minha cutucada, Deus não se mexe. E
isso não é coisa de ofender Deus? Segundo, estou sugerindo que Ele deve andar
meio esquecido, desmemoriado, necessitado de um secretário que lhe lembre
suas obrigações. E trato de, diariamente, apresentar-lhe a sua agenda de
trabalho. Mas está lá nos salmos e nos evangelhos que Deus sabe tudo antes
que a gente fale qualquer coisa. Ora, se a gente fica no falatório é porque
não acredita nisso. Não acredito em oração em que a gente fala e Deus escuta.
Acredito mesmo é na oração em que a gente fica quieto para ouvir a voz que se
faz ouvir no meio do silêncio. Voltei à minha amiga: – Veja
você. Tive um filho que estudava longe. Eu gostava dele. Ele gostava de mim.
De vez em quando a gente se falava ao telefone. E o dinheiro da mesada ia
sempre, com telefonema ou sem telefonema. Agora imagine: de repente começo a
perceber telefonemas dele três vezes por dia e mensagens por sedex, cartas e
telegramas louvando o meu amor, agradecendo a minha generosidade... Você acha
que isso me faria feliz? De jeito nenhum. Concluiria que o meu pobre filho
havia endoidecido e estava acometido de um terrível medo de que eu o
abandonasse. Pois é assim mesmo com Deus: quem fica o dia inteiro atrás dele,
com falatório, é porque desconfia dele. Mas o pior é o gosto estético que
assim se imputa a Deus. Uma pessoa que gosta de passar o dia inteiro ouvindo
os outros repetindo as mesmas coisas, as mesmas palavras, as mesmas rezas,
pela eternidade afora, não deve ser muito boa da cabeça. Para mim isso é o
inferno. Quem reza demais acha que Deus não funciona bem da cabeça. Acho que
ele ficaria mais feliz se, em vez do meu falatório, eu lhe oferecesse uma
sonata de Mozart ou um poema da Adélia... Mas aí o alto-falante chamou o meu
vôo, tive de me despedir, e imagino que ela ficou aflita, temerosa de que
Deus derrubasse meu avião com um raio. Mal sabia ela que Deus nem mesmo havia
ouvido a nossa conversa pois, cansado das doidices dos adultos, ele foge
sempre que vê dois deles conversando e se esconde deles, disfarçado de
criança.
28/2/94 (p. 54-57) |
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